O texto abaixo foi publicado na revista Quarentena, do Júlio Ribeiro, incansável empreendedor na área da comunicação. A revista está na terceira edição.
‘Se eu cheguei até aqui depois de três meses de quarentena com boa saúde física e – desconfio – também mental devo basicamente ao meu filho de quatro anos, um moleque esperto que tomou posse do meu celular e, claro, do meu coração. Ele faz de mim o que quer: sou sua montaria, seu rival em lutinhas que me deixam exausto e “vítima” de outras brincadeiras.
Ócio neste período não faz parte do meu vocabulário, não sei o que é isso que aflige tanta gente, pelo que leio e ouço.
O moleque estabelece o roteiro de “brigas” em que eu sempre sou o vilão, incorporando seres malignos como certos indivíduos com elevado poder destrutivo que ocupam o noticiário mórbido e assustador desses tempos de pandemia. Na imaginação dele, somos protagonistas de “filmes” em que os vilões, lógico, representados por mim, sempre são derrotados – o que, infelizmente, só acontece mesmo na ficção, salvo exceções.
Uma criança nessa idade é incansável. É preciso ser criativo para amenizar ou suprir a falta das atividades lúdicas e educativas da escolinha, além do convívio com os coleguinhas. Mas o manancial de ideias se esgota rapidamente. Chega o momento em que é preciso recorrer à tecnologia, não tem como escapar, desafiando orientação de pediatras, oftalmologistas e psicólogos.
No começo, fui mais comedido, mais contido na liberação dos vídeos infantis e jogos. Apelei para os livros, as revistas da turma da Mônica e do Mickey, os quebra-cabeças, estes sempre com super-heróis como o Homem-Aranha (o preferido dele) e os Guardiões da Galáxia que, como se não bastassem os criminosos de todos os níveis que nos saqueiam aqui, ainda encontram tempo para viajar pelo espaço para enfrentar alienígenas, alguns tão assustadores que causam pesadelo nos inocentes.
Foi a partir da fase tecnológica de entretenimento que eu descobri umas figurinhas simpáticas, personagens de desenhos de excelente nível técnico e conteúdo aparentemente saudável, sem mensagens subliminares negativas. Digo aparentemente porque sempre pode aparecer alguém como aquela criatura que tempos atrás atacou o escritor Monteiro Lobato, cuja obra me acompanhou na infância.
Foi durante a clausura que conheci personagens como a Peppa Pig, uma porquinha meiga, capaz de reter meu filho por uns 30 ou 40 minutos, se eu estiver junto. Se me afasto, logo ele me chama. Há outros que figuram no pódio das preferências: o Pocoyo e sua turma, figuras animadas que se movimentam tendo como cenário um fundo branco. Outro que ele adora é o seriado Patrulha Canina, formada por filhotes de cães que vivem salvando alguém em apuros. Parece inacreditável, mas o seriado foi atacado duramente em meio aos protestos pela morte de George Floyd. Não quero me estender sobre isto, é demais pra minha cabeça.
Não vejo maldade nesses desenhos. Pelo contrário. Devo muito a esses programas. A Peppa e os demais personagens são meus companheiros em várias partes do dia. Por exemplo, faz dois meses que troquei o Jornal Nacional e seu irritante e revoltante noticiário necrológico por essas figurinhas amigas e alegres. Garanto que está me fazendo muito bem.
O fato é que esses desenhos ajudam a aliviar a mente.
Não dá pra esquecer os desenhos “raiz”, elaborados sem a tecnologia atual e talvez por isso não despertem tanto a atenção das crianças de hoje. Fiz questão de apresentar ao meu guri os desenhos animados da “minha época”, como Pernalonga, Pica-pau e Tom & Jerry, o que ele mais gosta entre os antigos. Ah, ele torce pelo camundongo na eterna luta contra o gato.
Às vezes, quando o flagro apertando os olhos diante da telinha do celular fico irritado. E reclamo forte. Ele rebate dando um passo para trás, erguendo os braços calmamente e com um sorriso maroto: “Calma, pai, calma; calminha, calmiiinha…”.
Como manter a brabeza? Estou aprendendo com ele. Outro dia, no almoço, ele comentou, do nada: “Pai, você é um sortudo”. Fiquei intrigado. “Por que você (ele gosta de usar este pronome) diz isso”, perguntei. Ele respondeu de pronto: “Porque sim, ora”.
Sim, eu sou um sortudo’.