Um dia de cão

Meu dia de cão sarnento começou cedo. Oito da manhã comecei a ligar para o depósito de veículos de Alvorada. Meu carro, recuperado dos bandidos, estava lá. Ninguém sabia dizer em que estado. Afinal, ‘são dezenas de carros e motos recolhidos diariamente’, alguém disse.

Liguei para a delegacia, a 1ª DP. Um plantonista informou que o ‘carro estava bem, apenas com alguns arranhões, escoriações leves, nada grave. Vai se recuperar’. Ele falou, brincando, como se o carro fosse um enfermo.

– Bem, temos que dar alta nesse paciente – devolvi.

A orientação foi de que eu aparecesse na delegacia a partir das 14 horas, quando a perícia já teria sido feita. Antes de ligar, ele me disse o que seria preciso, cópia disso, cópia daquilo. Cópia da carteira de identidade. “Foi roubada”, eu disses, “serve o passaporte?”. Servia.

Bem, o mesmo passaporte serviu de entrada para o inferno que é conseguir uma segunda via da carteira de habilitação (também roubada) sem ter a carteira de identidade.

Eram umas dez horas quando ‘dei entrada’ no Centro da Protásio Alves, bairro Santa Cecília.

Antes um aparte: na véspera, no Centro da Ramiro, onde fiz a minha primeira tentativa,  haviam me informado de que eu precisaria de um documento meu com foto. O ideal seria a Carteira de Identidade. Mostrei o BO da polícia, com todos os meus dados, mas não adiantou. Eu deveria, mesmo, voltar com um documento com minha foto, e poderia ser o passaporte. Sem isso, nada de segunda via.

Está bem, os burrocratas precisam justificar seus salários e sua obstinação em ferrar com o contribuinte, esse sujeito infeliz que paga impostos para sustentar essa máquina pachorrenta, cruel e insaciável.

Isso foi na quarta-feira, à tarde, no dia seguinte ao roubo do meu carro.

Então, quando ingressei em outro CFC, o da Protásio, que era mais no meu caminho, estaca tranqüilo que não haveria problema.

O passaporte, atual, feito este ano, reúne todas as condições de substituir uma carteira de identidade. Afinal, é um documento aceito em qualquer país, não teria por que o Detran rejeitá-lo.

É o que eu pensava.

Não, passaporte sem os nomes dos pais não serve – disse a simpática atendente. Vocês já notaram que todas as atendentes são simpáticas e sorridentes na hora em que dizem que um não, que falta um documento, uma assinatura, uma cópia autenticada. Elas parecem felizes em nos deixar irritados, frustrados, revoltados. Para isso, contam com o apoio fundamental dos burrocratas, que fazem de tudo para facilitar a vida deles, não dos contribuintes.

– Ah, mas não se preocupe, o sr pede a carteira de identidade e depois vem aqui encaminhar a carteira de habilitação -, ela diz toda meiga, querendo transmitir solidariedade.

Assim, por cima, vou ficar uns 12 dias sem poder dirigir. Tudo porque a minha carteira de identidade foi roubada e o passaporte, aceito até na China, não serve para o Detran.

Imaginem um trabalhador autônomo, um vendedor, sem poder dirigir por tanto tempo por causa de uma frescura dessa. Quem vai pagar suas contas? Os burrocratas?

Um documento federal não é aceito por um órgão estadual, aquele mesmo que há alguns anos ocupa manchetes das páginas policiais e políticas.

A carteira de trabalho também não serve. Ah, o modelo novo serve. Eu que sou antigo não conheço o modelo novo. Duvido que trabalhadores na faixa dos 40 anos tenham a nova carteira.

Portanto, o contingente de trabalhadores que não podem usar a carteira com o intuito de pedir uma segunda via (eu disse, segunda via, não a primeira) da carteira de motorista, é enorme.

Eu e toda essa gente somos discriminados. Entre nós há muita gente mais velha. E o estatuto do Idoso?

A carteira do Trabalho, documento federal, também não é aceito pelo Detran, com exceções para os documentos mais novos.

Quero ver essa gente rejeitar o passaporte e a carteira de trabalho por escrito…

Ah, soube que o passaporte serve como documento para participar até de concurso público. Mas não é aceito pelo Detran.

Isso tem que acabar.

Depois, à tarde, meu inferno continuou. Fiquei mais de quatro horas em Alvorada (precisaria mais umas 50 linhas para contar o que houve). Mas consegui recuperar o carro. Realmente, ele tinha leves escoriações.

Mas sobreviveu.

Espero que eu também sobreviva enredado nesse cipoal burrocrático em que a carteira de identidade é a base de tudo.

Sem ela, eu sinto que não existo nesse mundo dos burrocratas sarnentos.

Eu penso que nós levarmos adiante esse tipo de protesto poderemos mudar esse estado de coisas. Ou então teremos de conviver com isso até o final dos tempos.

Eles são muitos e determinados em infernizar a nossa vida.

Meu segundo assalto

Uma hora atrás eu estava na 10ª DP, no Bom Fim, registrando um assalto. Dois bandidos armados levaram meu carro. Foi a segunda vez. A primeira foi há uns três anos. Também levaram o carro, que nunca apareceu. Felizmente, eu tinha seguro, como agora.

O curioso que os dois assaltos foram no mesmo lugar: em frente a casa da minha ex-mulher, no bairro Rio Branco. Dá o que pensar…

Dei bandeira. Fiquei conversando com meus filhos em vez de ir embora rapidamente, como costumo fazer.

Quando vi, dois caras magrinhos, com jeito de assaltantes (um deles vestia uma camisa do Barcelona, bem folgada), um negro e outro mulato, cruzaram a rua em diagonal em nossa direção.

Meus filhos sinalizaram e pediram que eu entrasse no carro. Era tarde demais, pensei. Mesmo que entrasse eles me pegariam e talvez fosse pior por ter tentado fugir.

Éramos três, eles dois. Imaginei que talvez eles seguissem em frente para pegar uma vítima menos complicada. Ledo engano.

O neguinho magrinho, que parecia ter saído do filme Cidade de Deus, veio em minha direção, segurando um revólver prateado.

– Perdeu, perdeu – disse ele.

No primeiro perdeu eu o encarei. No segundo, olhei para o revólver.

Realmente, eu tinha perdido.

Me pediram a chave do carro, perguntaram se tinha bloqueador, eu disse que não. Pegaram minha carteira com os documentos, meu celular e minha máquina fotográfica com a fotos que eu havia tirado à tarde da Arena do Grêmio e pensava em publicar aqui no blog.

Ah, quando o mulato se preparava para entrar no carro eu vi o meu cachorro agitado no banco do passageiro. Perguntei se podia levar o cão, o Elvis. O mulato respondeu que sim, mas que fosse rápido.

O Elvis resistiu, não queria sair. Eu o puxei com força, ele escapuliu para o banco de trás.

O bandido reclamou: “Pega logo se não ele vai junto”.

– Posso abrir a porta de trás?

Foi aí que me dei conta que a situação começava a ficar cômica.

O assaltante respondeu que sim, mas que fosse ligeiro.

Eu me atirei pra dentro do carro e agarrei o bicho, que parecia assustado, certamente sentindo o clima de tensão no ar.

O mulato entrou no carro e perguntou de novo se tinha corta corrente. Repeti que não.

– Se tiver, eu volto aqui e acabo com vocês -, ameaçou.

E saiu dirigindo com dificuldade na arrancada porque é um carro com câmbio automático.

Ainda bem que tenho seguro.

Fica a lição mais uma vez: não dê bandeira na rua, ao lado do carro.